sexta-feira, 2 de maio de 2014

Lugares Estranhos: A Torre de Crânios de Nis - Um macabro marco histórico na Sérvia


Hoje ele não passa de uma curiosidade, protegido atrás de uma cerca que oculta sua visão por quem passa pela estrada que leva a cidade de Nis, no sul da Sérvia.

O muro foi colocado ali para impedir o acesso de curiosos. Ele foi erguido junto com uma pequena capela em homenagem aos homens que serviram de argamassa para a construção da Torre de Crânios de Nis

A macabra construção em formato cúbico foi encomendada pelo Grão Vizir Hurshid Pasha, conselheiro do Sultão Otomano Mahmud II em 1809. Ela é uma obra incomum, na forma de um retângulo de concreto com 3 metros de altura por cinco de largura. Cada lado é adornado com crânios humanos perfeitamente alinhados lado a lado, quatorze fileiras, totalizando nada menos do que 952 deles. O poeta francês Alphonse de Lamartine ao se deparar com o monumento escreveu:

"Uma torre se erguia na planície, brilhando branca como se fosse adornada por mármore resplandescente... fui atraído até ele e quando ergui meus olhos para o monumento, descobri que as paredes, que eu supunha terem acabamento em mármore ou pedra branca, eram na verdade compostas de fileiras de crânios humanos. Estas caveiras desbotadas pela chuva e fustigadas pelo sol, foram cimentadas, formando uma espécie de arco do triunfo macabro. Em alguns pontos, restos de cabelos ainda estavam presos ao escalpo dos crânios balançando ao vento. Os olhos vazios observavam eternamente a paisagem onde eles morreram, contemplando o nascer e o por do sol. A brisa suave da montanha soprava através das inúmeras cavidades desses crânios, soando como um triste lamento."   


Mas de onde veio a inspiração para uma obra tão mórbida?

A Torre foi erguida após a Batalha de Cegar, travada no ano de 1809 entre rebeldes sérvios e Tropas Otomanas. No passado essa região foi uma movimentada rota que ligava a capital otomana, Istambul às terras ocupadas pelos turcos no Leste Europeu. Com esse monumento tétrico, os turcos esperavam amedrontar os sérvios evitando rebeliões que buscassem estabelecer a independência.

No início do século XIX, os nacionalistas sérvios iniciaram uma campanha desigual por liberdade contra os turcos. Uma guerrilha se formou e as ações de grupos separatistas foram se tornando cada vez mais frequentes até se transformarem em uma rebelião em grande escala. Após a significativa vitória em Ivankovak em 1805, os rebeldes sérvios prepararam uma estratégia para retomar territórios ainda anexados pelos colonizadores turcos.

Os rebeldes consideravam a linha de front ao sul de enorme importância para seus objetivos, por isso o comandante Miloje Petrovic enviou um contingente de homens para defender a cidade de Nis, valioso ponto estratégico e centro comercial. Nis era uma cidade murada, usada pelos próprios turcos como cabeça de ponte para sua invasão anos antes. Manter a cidade sob controle era essencial para os rebeldes que foram acolhidos pelos habitantes da cidade como heróis libertadores que escorraçaram os turcos.

Mas as forças do Sultão não aceitariam essa derrota, logo uma tropa foi organizada  marchou para os arredores de Nis acampando a seis quilômetros da cidade. Os turcos estavam em vantagem numérica e melhor equipados, dispondo ainda de canhões. A perspectiva de um longo cerco e da destruição de Nis pela artilharia turca fez com que os sérvios planejassem uma medida inesperada, eles atacariam de surpresa enquanto os turcos acampavam à caminho de Nis.

Um contingente de 12 mil soldados avançou sobre os turcos, que tinham uma vantagem de quase 3 para um. Pegos de surpresa, os turcos sofreram pesadas baixas e tiveram parte de seu equipamento destruído. Apesar de ter de bater em retirada após a investida, os sérvios tiveram uma vitória significativa e puderam se reagrupar nos arredores de Nis, onde fortificaram sua posição construindo trincheiras para aguardar a retaliação.

Furioso com o ataque, o vizir Hurshid Pasha, assessor do Sultão, deslocou duas tropas que estavam enfrentando os russos a leste de Nis: Tomar a cidade e esmagar os rebeldes havia se tornado prioridade.


Apesar da enorme vantagem numérica e de dispor de uma cavalaria pesada, os turcos encontraram dificuldade em romper a linha de defesa montada pelos sérvios. O posto mais avançado ficava no Monte Cegar e era protegido pelo Duque Stevan Sindjelic, liderando cerca de 3 mil homens. A posição estratégica permitia que os rebeldes anulassem a superioridade numérica mantendo a cavalaria afastada.

Sem outra opção, os comandantes turcos concluíram que a única maneira de vencer seria realizar um ataque contínuo, investindo com a infantaria sem parar. O ataque foi realmente feroz, os turcos tentavam escalar a encosta íngreme do monte às centenas, avançando em massa e sofrendo pesadas baixas. O terreno segundo cronistas da batalha ficou escorregadio com o sangue de milhares de soldados e coberto de cadáveres que se amontoavam em pilhas de carne retalhada. Finalmente os turcos conseguiram chegar até a posição defensiva no alto do monte, onde os exércitos se encontraram cara a cara, transformando as trincheiras em um sangrento campo de batalha. A luta foi tão esganiçada que os homens já sem munição tiveram de recorrer a baionetas e sabres, paus e pedras, socos e mordidas para matar seus oponentes. Cobertos de sangue e lama, os homens já nem conseguiam distinguir amigo de inimigo.

Pressentindo que a batalha estava perdida, o Duque Sindjelic teria corrido pessoalmente para o arsenal onde a pólvora era estocada, lá ele acendeu um rastilho com sua pistola e mandou tudo pelos ares. A violenta explosão fez tremer todo o campo de batalha e matou todos os que estavam nas trincheiras; sérvios e turcos. Como saldo da sangrenta batalha, todos os 3 mil nacionalistas sérvios que lutaram em Cegar foram mortos, os turcos apesar de terem vencido, contabilizaram 12 mil vítimas.

Tendo derrotado o exército em Cegar, as tropas conseguiram avançar para Nis onde organizaram uma expedição punitiva contra os pequenos vilarejos do Vale do Rio Morava que apoiaram a rebelião. Dizem que em sua fúria, os turcos ordenaram o fuzilamento de milhares de homens, e que quando a munição chegou perto de terminar, eles recorreram a enforcamentos e decapitação em massa como forma de execução. Os vencedores executaram quase metade da população masculina, não poupando crianças e velhos, atearam fogo a fazendas, estupraram mulheres e chegaram ao requinte de ordenar que terras fossem salgadas para que nada mais crescesse ali.

Meses após a sangrenta batalha, Hurshid Pasha viajou até Nis a fim de inspecionar os frutos de sua conquista. Ao visitar o local onde se deu a Batalha, o Vizir se deparou com uma capela improvisada erguida por camponeses em homenagem aos heróis nacionalistas ali sepultados. Furioso com a demonstração de orgulho nacionalista, ele mandou derrubar a capela e em seguida ordenou que os corpos dos rebeldes enterrados fossem exumados e decapitados.


As cabeças, 952 delas foram descarnadas e cimentadas na estrutura que ainda restava da capela, transformada em um monumento sinistro à vitória otomana e tributo à sua conquista. Outras 223 cabeças, entre as quais supostamente a do Duque Sindjelic, foram colocadas em barris com sal grosso e enviadas para Instambul como troféu de guerra.  

A princípio a Torre de Crânios de Nis ficou ali como um marco da sangrenta batalha. Anualmente no aniversário da luta, alguns nacionalistas corajosos visitavam o lugar para depositar flores ou jurar que a morte de seus companheiros não seria em vão. 

Alguns passaram a considerar o lugar assombrado e estórias assustadoras começaram a circular entre os aldeões supersticiosos. 

Em 1818 três soldados turcos foram assassinados e seus corpos desmembrados, foram colocados no alto da Torre pintada de vermelho como se os crânios tivessem extraído deles uma vingança mórbida. Outros afirmam que à noite, as caveiras rangiam seus dentes em uníssono, um ruído que podia ser ouvido à grande distância e que era capaz de levar o mais razoável dos homens à loucura. Um boato insistente afirmava que aqueles que desejavam vingança deveriam repetir o nome dos inimigos que desejavam ver mortos diante do monumento. Em seguida, deveria remover um dos crânios e enterrá-lo em terra consagrada com um objeto pertencente a pessoa que queriam obter vingança. Diziam que como agradecimento o fantasma buscaria essa pessoa e com dedos frios faria seu coração parar de bater.

Já em 1822, o violento vizir Hurshid Pasha responsável pela construção do monumento cometeu suicídio na Grécia. Boatos na época afirmavam que ele teria decidido tomar sua própria vida por ser constantemente assombrado pelas frequentes visões de crânios lamentosos que não o deixavam dormir, lembrando-lhe constantemente das atrocidades que ele ordenou contra os sérvios. Dizem ainda que quando a morte do vizir ocorreu, uma gargalhada triunfal se fez ouvir no alto do Monte Cegar e que na manhã seguinte dezenas de crânios simplesmente haviam desaparecido. 

Com o tempo, alguns dos crânios caíram, outros foram roubados ou simplesmente sumiram. Mithad, o neto do Sultão Mahmud II, assumiu o Império Otomano em 1866 e ordenou que o monumento fosse colocado abaixo. Ele devolveu também o crânio de Sindjelic, uma relíquia que estava em exposição no Palácio do Sultão como troféu de guerra. Nessa época, o Império já estava se esfacelando e Mithad desejava se desvincular do passado de barbárie de seus antecessores. Porém, nessa época os sérvios já haviam adotado a Torre de Crânios de Nis como um símbolo de sua resistência e eles exigiram que o monumento continuasse no lugar.


Em 1892 com a liberação da Cidade de Nis e a partida dos otomanos, sacerdotes conduziram uma celebração religiosa para purificar o monumento e garantir que os crânios tivessem os ritos fúnebres adequados para seu descanso eterno. A capela foi construída ao redor do monumento que passou a ser considerado terreno consagrado.

O poeta Alfons de Lamartin após ter conhecido a história do monumento escreveu em suas memórias um trecho que depois foi imortalizado em uma placa colocada na capela construída ao lado da torre:

"Deixam que esse monumento seja preservado! Ele é uma lição aos descendentes desses bravos patriotas para que jamais deixem de valorizar sua liberdade e recordem do preço pago por eles".  

Atualmente existem apenas cerca de 60 crânios ainda fixados ao monumento que recebe a visita de mais de 85 mil pessoas por ano.

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